segunda-feira, 23 de maio de 2011

A Vida de Sankara


A Vida de Śaṅkara

Por
Swami Kṛṣṇaprīyānanda Saraswātī

Gita Ashrama
Porto Alegre, RS - Brasil
 2006-2011


Jagadguru Sri Adi Sankaracharya



jaya jaya Sankara
hara hara Sankara


1. Vida de Sankara
Convém lembrar, que a história de Sri Sankara, como boa parte dos ensinamentos védicos, está fundamentada na tradição oral, de modo que as datas podem não ser consideradas exatas. Os textos que temos, por sua vez, também fazem parte da tradição cultural, de modo que o que deve permanecer é o cerne da história. Uma ou outra variação é perfeitamente natural em casos como este.

2. Nascimento e infância
Sankara nasceu de um casal Nambhudiri Brahmanas, com os nomes de Sivaguru e Aryamba, num pequeno vilarejo chamado Kalai, em Kerala. A casal havia ficado muito tempo sem filhos, e oraram por uma criança no templo de Vadakkunnatah (Vrishacala), próximo a Trichur. O Senhor Siva, então, apareceu para o casal de devotos num sonho, e oportunizou para eles uma escolha entre um filho de vida longa e de pouca inteligência, ou um filho com vida curta mas com muita inteligência, como um filósofo brilhante. O casal optou pelo filho brilhante, mas com vida curta, e assim Sri Sankara nasceu.

Sankara e o crocodilo
Logo cedo, Sankara perdeu o Seu pai, e a Sua mãe realizou a cerimônia de Upanayana (cordão sagrado) com a ajuda de seus parentes. Sankara desde cedo sobressaía-se em todos os ramos do conhecimento tradicional Vaidika (dos Vedas). Há alguns milagres relatados a respeito do jovem Sankara. Como um Brahmacarin, ele cuidava de coletar esmolar das famílias no vilarejo. Certa feita, uma senhora que era muito pobre, mas que não queria mandar embora o jovem de mãos vazias, deu a Ele seu último pedaço do fruto Amla que tinha em casa. Sankara, sentindo a pobreza miserável da mulher, compôs um hino com o nome de Kanakadhara Stavam para Sri ou Lakshmi, a deusa da riqueza, nos degraus da porta da casa da senhora. Como resultado, uma chuva de Amlas de ouro recompensaram a senhora por sua piedade. Numa outra ocasião, se diz que Sankara desviou o curso do rio Purana, para Sua mãe não ter que caminhar uma longa distância todos os dias para os ritos diários.

3. Sannyasa
Sankara desde cedo tinha o sentimento de Sannyasa. Casar-se e fazer parte da vida de chefe-de-família nunca fez parte da meta da Sua vida, apesar de Sua mãe estar ansiosa para vê-lO como Grihastha. Certa feita Sankara estava tomando banho no rio, um crocodilo agarrou-o pela perna. Sankara sentiu que estava destinado a morrer naquele momento, e decidiu diretamente entrar no quarto Ashrama chamado Sannyasa, então. Ele implorou para a Sua mãe que estava na beira do rio para concordar que Ele se tornasse um Sannyasa, devido ao fato extraordinário. Este tipo de renúncia é chamada de Apat-sannyasa. O crocodilo soltou-O imediatamente, quando Ele mentalmente tomou esta decisão de renunciar ao mundo. Após esse incidente, Sri Sankara saiu a procura de um Guru, que pudesse iniciá-lo formalmente na ordem. Para confortar a Sua mãe, Sankara lhe prometeu que retornaria no momento de sua morte, para conduzir os ritos funerários, apesar do fato de Ele ter tomado Sannyasa.

Adi Sankaracharya reverencia um Candal
Sankara saiu viajando para todos os lugares, a procura de um Guru respeitado que o iniciasse regularmente no seu voto de Sannyasa. Então Ele foi para as margens do rio Narmada, na região central da Índia. Ele estava no Ashrama de Sri Govinda Bhagavatpada, o discípulo de Gaudapada, o famoso autor do Mandudkya Karikas. Sankara foi aceito como discípulo por Sri Govinda. Vendo o agudo intelecto do Seu discípulo, Govinda encarregou-o de expor a filosofia do Advaita através de comentários dos principais Upanishads, os Brahmasutras, e o Bhagavad-gita. Sankara deixou o Ashrama do Seu Guru e foi viajar para vários locais na Índia, compondo Seus comentários neste meio tempo. Neste tempo Ele era um adolescente. Ele atraiu muitos discípulos ao redor d´Ele, e um importante entre eles foi Sanandana, que mais tarde ficou chamado de Padmapada. Neste período, Sankara escreveu comentários sobre o Badaryana Brahma Sutras, os vários Upanishads, e o Bhagavad-gita. Estes comentários, chamados de Bhashyas, sustentam o pináculo dos escritos filosóficos indianos, e despertaram a longa tradição dos sub-comentários conhecidos como Vartikas, Tikas e Tippanis. Ele, também, fez comentários sobre o Adhyatma Patala do Apastamba Sutras, e no Vyasana Bhasya dos Yoga Sutras de Patañjali. Adicional a estes textos de comentários, Sankara escreveu tratados independentes chamados de Prakarana Granthas, incluindo o Upadesasahasri, Atmabodha, etc.

4. Os debates
Além destes escritos e comentários próprios, Sankara procurou outros líderes de outras escolas, com o objetivo de engajá-los no debate. De acordo com a tradição filosófica na Índia, tais debates auxiliam a estabelcer um novo filósofo, e também ganhar discípulos e convertê-los de outras escolas. É, também, tradicional para o debatedor que perde a discussão, tornar-se discípulo do ganhador. Assim Sankara debateu com filósofos Budistas, com seguidores do Samkhya, e com os Purva Mimamsakas, os seguidores dos rituais védicos, provando se mais capaz que Seus oponentes nos debates filosóficos. Então Sankara procurou por Kamarila Bhatta, o mais famoso proponente da filosofia Purva Mimamsa naquela época, mas Bhatta no seu leito de morte tinha designado Visvarupa, seu discíulo, para lhe suceder. Visvarupa algumas vezes é identificado como Mandana Misra.

Sankara, Mandana e Bharati
O debate de Sankara como Visvarupa foi único. Foi escolhida a esposa de Visvarupa, chamada de Bharati, como sendo o árbitro para decidir quem seria o vencedor. Ela era muito instruída, sendo considerada uma encarnação da deusa Sarasvati. A aposta tinha um destino para toda a vida. O acordo era se Visvarupa vencesse, Sankara tomaria a ordem de casado ou Grihastha, mas se Sankara vencesse, Visvarupa deveria tomar a ordem de vida de Sannyasa, tornando-se um discípulo de Sankara. O debate esendeu-se por muitas semanas, sendo que fora colocado uma guirlanda de flores em cada contentor, e a que ficasse esmaecida primeiro seria a do perdedor. Sankara venceu, e Visvarupa tinha que tomar a ordem de vida renunciada. Contudo, Bharati disse que não poderia viver longe de seu marido, apesar de ter declarado Sankara o vencedor da disputa filosófica, desafiando o Senhor Sankara para questões sobre Kama-shastra, do qual Sankara não sabia nada. Mas Sankara pediu-lhe um tempo, durante o qual, usando Seus poderes yóguicos, chamados de Parakaya-pravesha, Ele entrou no corpo de um rei que estava falecendo, e experimentou a arte do amor com as rainhas. Retornando para casa de Visvarupa, Ele respondeu todas as questões feitas por Bharati, após o que Visvarupa foi ordenado Sannyasa com o nome de Suresvara. Ele se tornou um dos mais celebrados discípulos de Sankara, escrevendo Varttikas para o Sankara Bhasya no Yajurveda Upanishads, em adição aos seus próprios textos independentes em vários assuntos.

Adi Sankara reverencia Devi
Estabelecimento de Mathas: Sankara continuou a viajar com Seus discípulos por sobre a Índia, ao mesmo tempo compondo tratados filosóficos, e engajando-Se em debates. Diz-se que ninguém vencia Sankara, uma vez que não ficavam a altura do Seu oponente, deste modo, a vitória de Sankara era notável. Não temos dúvidas que isso de fato ocorreu, devido a grande popularidade e respeito sem igual que o sistema filosófico de Sankara goza nos dias de hoje. No curso de Suas viagens, Sankara ficou por um longo tempo no local do antigo Ashrama dos Rishis Vibhandaka, e Rshyasringa, no local conhecido como Sringagiri (Sringeri). Alguns textos dizem que Sanakra ficou em Srigeri por 12 anos. Um eremitério foi construído ali, o qual logo se desenvolveu num famoso Matha ou monastério. Suresvara, o discípulo que havia sido vencido após longo debate, ficou como o chefe deste novo Ashrama. Mathas similares foram estabelecidos nos centros de peregrinação em Puri, Dvaraka, e Joshimath, próximo a Badrinath, e Padmapada, Hastamalaka, e Trotaka foram os responsáveis pelos locais. Estes são conhecidos como Amnaya Mathas, e eles continuam a funcionar até os dias de hoje. Os seus chefes são conhecidos como Sankaracharyas, em honra ao Seu fundador, e são reverenciados como Jagadgurus, os mestres do mundo. Sankara, também, organizou a comunidade de monges Ekadandis, dentro da Sampradaya de Dasanami Sannyasis, e os afiliou aos quatro Mathas que Ele estabeleceu.

Neste meio tempo, Sankara escutou que Sua mãe estava prestes a morrer, e decidiu visitá-la, cumprindo a Sua promessa. Desta forma, Ele foi e realizou os rituais fúnebres, mesmo contra a resistência dos parentes de Sua mãe. Os parentes não permitiram que Ele fizesse os ritos funerários, porque Ele era um Sannyasi, mas Sankara repeliu esta objeção, e construiu Ele mesmo uma pira funerária para os ritos de cremação nos fundos da casa. Após isso, Ele decidiu viajar, visando muitos locais sagrados, revivendo Pujas e templos que haviam caído no esquecimento, estabelecendo Sri Yantras e templos para Devi, como no caso de Kancipuram, e compondo muitos hinos devocionais.

5. Ascenção a Sarvajñapitha
Sarada Pittham
No curso da Suas viagens, Sankara alcançou Kashmir. Ali havia um templo dedicado a Sarada ou Saraswati, a deusa da sabedoria, o qual hospedava Sarvajñapitha, o Trono da Onisciência. Havia uma tradição que os filósofos que visitavam o lugar se engajavam em debates filosóficos. Ao vitorioso seria permitido ascender ao trono de Sarvajñapitha. Diz-se que os filósofos do Sul da Índia jamais tinham ascendido a posição de Pitha, apesar de Sankara ter visitado Kashmir e derrotar todos os outros filósofos. Então ele ascendeu ao Sarvjñapitha com as bênçãos da Deusa Sarada. Sabe-se que poucos séculos mais tarde, Ramanuja, o mestre da Vasishta-advaita, que visitou o mesmo Sarvajñapitha, a procura de Baudhayana Vritti. Porém, uma variante da tradição do Sarvajñapitha localiza-se em sul da Índia, em Kacipuram.

Sankara viveu até a idade de 32 ou 38 anos. Ele expôs a filosofia do Advaita Vedanta através dos Seus escritos; Ele atraiu muitos discípulos inteligentes para ele, que levaram adiante a filosofia da tradição Vedântica; Sankara também instalou muitos Mathas ou centros de monastérios para Seus seguidores. Ele teve uma vida curta mais muito movimentada. Ele afastou-se para os Himalayas e desapareceu dentro de uma caverna próximo a Kedarnath, onde é considerado o local onde Sankar atingiu o Maha Samadhi. Mas outra tradição diz que Sankara passou os Seus últimos dias em Karavirpitham, em Mahur, Maharashtra; Trichur em Kerala, ou Kancipuram no Tamil Nadu. Isso se deve pelo fato de Sankar ser muito querido pelas diferentes tradições.

Mas o que é comum e verdadeiro na tradição de Sannyasa de Sankara é que Ele foi um monge “peripatético”, isso é, que viajou por todos os lados do país em Sua curta vida. Sua fama se espalhou por todos os lados, e Suas histórias são recontadas em diferentes partes da Índia. Como um verdadeiro Sannnyasi que foi, Ele viveu de forma completamente desapegado das coisas mundanas. Ao ponto que a cidade que Ele nasceu, Kaladi, permaneceu desconhecida por um longo tempo. O crédito de identificação deste vilarejo em Kerala deve-se a um sucessor no século XIX em Sringeri, Sri Saccidananda Sivabhinaga Nrisinha Bharati. Similarmente, o crédito da renovação do Samadhi de Sankar, próximo a Kerala, deve-se a Sri Abhinava Saccidananda Tirtha, o sucessor em Dvaraka, no século XX.

om tat sat

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Glossário
Darshana= visão filosófica
Grihastha= vida de chefe de família
Nambhudiri= Brahmanas de elevada estima na Índia.
Mathas= centro de estudos.
Mimamsa= darshana de privilegia os rituais.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Asana e Vedanta


Asana e Vedanta

Swami Krsnapriyananda Saraswati
Gita Ashrama
2011



É necessário o exercício físico no Vedanta?
Asana é considerado uma das partes do Ashtanga Yoga, codificado no Yoga Sutra de Patañjali, aparecendo no terceiro aspecto por ele indicado. Ele tem em vista firmar o corpo para meditar (Dhyana). Na perspectiva do Vedanta, o Asana é apenas importante se há algo que importune o Jñani no seu corpo, que então esteja impedindo de ater-se aos estudos. É claro que alguém o tempo todo ocupado com as agruras do corpo (além do que temos que ficar a maior parte do tempo em torno da manutenção do mesmo), não terá suficiente concentração para compreender os elevados estudos sobre o Ser ou Atma.

Portanto, na reflexão filosófica do Vedanta, os exercícios físicos têm em vista acalmar a agitação das ondas pensamento no neófito e dirigir os sentidos para ekagrata (foco num só ponto). De outro modo, apenas reforçam a identidade objetiva. Se o objetivo é ter uma atividade física e esta manter a mente atenta no Absoluto, então, sem dúvida a dança, como o Bharatnatya, por exemplo, é uma eleição superior.

Om tat sat

Ideologia x Filosofia


Ideologia x Filosofia

Swami Krsnapriyananda Saraswati

Gita Asrama
2011

Quadro "Sede"


Compreendendo o tema
Como diz Mario Bunge, “As ideologias são de dois tipos: religiosas e sociopolíticas.”[1] Em nosso caso, nos interessa salientar especialmente a ideologia religiosa. Apesar de o autor desenvolver a questão sociopolítica no livro citado, percebemos que, em muitos casos, nos dias atuais, religião e política se confundem, apesar da existência da uma vontade laica nos governos democráticos em separar estado e religião. Mas em todos os casos, ideologia é um conjunto de crenças; crenças estas que podem variar conforme a região, tempo, lugar e circunstâncias sociais. Conforme frisa aquele autor, as regras ideológicas são agrupadas em quatro classes, a saber:

“1) Afirmações ontológicas a cerca da natureza da pessoa e da sociedade (que classes de entes são as pessoas: materiais, espirituais ou mistos); de que modo se combinam para formar comunidades, e o que são estas últimas (animais, culturais, ou mistas);
2) Afirmações acerca dos problemas econômicos;
3) Juízos de valor sobre as pessoas e seus atos sociais;
4) Um programa de ação ou de inação, para a solução da manutenção dos problemas sociais, e a obtenção de um conjunto de metas individuais e sociais.”[2]

Como exemplo diferenciador entre ideologia e filosofia, Bunge cita o caso dos sem-terra, e como este aspecto se apresenta de forma diferente diante da abordagem epistêmica ou ideológica: “Se perguntarmos de que vivem e como vivem os camponeses sem terra do estado X estaremos pedindo uma investigação científica ou os seus resultados. Por outro lado, se perguntarmos se é justo e conveniente para a sociedade como um todo haver camponeses sem terra numa zona onde algumas famílias dominam grandes extensões de terra tal pergunta clama por uma resposta ideológica”. Este exemplo é importante, porque nos coloca diante da separação de questões filosóficas e ideológicas. Filosofia é um constante perguntar, e este perguntar é feito de hipóteses teóricas e não exatamente de afirmações dogmáticas; como diz Bunge, “... uma teoria é constituída de hipóteses, não de afirmações dogmáticas, e não contém juízos de valor nem programa de ação (...) Além disso, em geral uma ideologia não é produto da investigação básica, e nem se modifica com os resultados desta: até aqui, as ideologias (no seu sentido amplo) têm sido bastante resistentes às novidades científicas. Uma ideologia pode mudar, mas apenas nos detalhes: se um ismo mudasse radicalmente, deixaria de ser aquele ismo”. [3]

Bunge, também, define muito bem a questão da ideologia e da Filosofia sob a luz da Epistemologia, principalmente salientando a posição da visão do chamado “terceiro mundo” com o uso de slogans (onde se inclui a farta proliferação de “eu-ismos”; “eufemismos”); onde se confunde “ideologia com Filosofia” e com “Ciência Social”. Escreve ainda o referido autor que aqueles quem não possuem filosofia, “... vociferam slogans em lugar de fazer análises filosóficas ou sociológicas, e repetem ou comentam dogmas ideológicos no lugar de construir teorias filosóficas ou sociológicas. E qual a razão disso? Isto é mais fácil do que fazer ciência ou filosofia, e produz a ilusão de ser socialmente útil”.[4]

Como a ideologia molda o pensamento
De modo peculiar, toda a ideologia tem um lastro mais ou menos científico; diz-se “mais ou menos” devido que nem tudo que é crença tem um fundo científico, sob o prisma da indução, isso porque, segundo vemos, na ideologia clássica, ela é habitualmente “... introduzida por algum líder carismático e resistida por outros lideres carismáticos, em vez de ser resultado de investigações realizadas pela comunidade de investigadores cientistas ... não tolera a crítica, não pratica a autocrítica, faz pouco ou nenhum caso dos dados emitidos, e não está em dia com os avanços da ciência”.[5] Portanto, muitos dizem apressadamente que se trata de Filosofia a ideologia que defendem, mas não passará de simples ideologia sem reflexão filosófica alguma. Eis porque é difícil para os “ocidentais”, principalmente porque estão desacostumados a filosofar, compreenderem o pensamento filosófico do Oriente Védico. Não raro, por exemplo, colocam Budismo, Tantrismo e o Vedānda, etc., como sendo “farinha do mesmo saco”, quando há profundas e importantes diferenças filosóficas entre eles, e mesmo porque as escolas do Tantra e do Vedānta – pelo menos nas suas origens - se distanciam substancialmente do Budismo por estarem bem menos contaminadas por ideologias.[6] Por outro lado, há, também, ingênuos “dualistas”, que se defendem dizendo “propor”, o Vedānta, quando o que pregam - na realidade do viés filosófico - é uma apressada interpretação ideológica do Sāṇkhya, e, ainda “segundo o que acham” (pura doxata)[7] e erroneamente pensam se tratar de filosofia, como vemos em muitos movimentos religiosos independentes que vieram ao Ocidente no passado recente, e hoje são inexpressivos, e que sequer ocuparam os meios acadêmicos sérios no mundo. 

om tat sat


[1] BUNGE, Mário, Epistemologia, p. 147.
[2]Ibidem, ps. 147-148.
[3]Ibidem, p. 149.
[4] Bunge, Mario. Ciencia Y Desarrollo, p. 99
[5] Ibidem, pgs;105=106.
[6] Para os “portuguesófilos” de plantão, a expressão “ambas” não se refere somente a dois, mas é proveniente do Latim, e refere-se a “um e outro”, portanto, não está incorreto dizer ambos os três; não é pleonasmo.
[7] Doxata, do grego, “doxa”, ou opinião; ausência de epistemologia; diferente de Episteme, conhecimento pelas causas.

Filosofia e religião II


Filosofia e religião II

Swami Krsnapriyananda Saraswati
Gita Asrama
2008-2011
Sri Krsna instrui Arjuna sobre o Dharma
Esta afirmação num Śāstra Védico (escritura que fornece citações de outras escrituras), considerada uma obra máxima de “religiosidade” da Índia, pode soar estranha ao neófico, porém é facilmente compreendida pelo filósofo. Ela é uma afirmação libertadora, embasada no conhecimento (Jñana), e não na fé cega sem conhecimento, Avidya. Simplesmente realizar algo sem perguntar por suas causas é uma forma de ignorância. No capítulo 12.12, também do Bhagavad-gītā, está afirmado: 

O conhecimento é superior à mera prática; a meditação no conhecimento é superior a ele, e a renúncia ou Tyaga é superior a todos, porque a paz sucede-se imediatamente para quem renuncia ... aos frutos das ações”. 

Filosofia não é religião, apesar de os seus conteúdos transcendentais apontarem aspectos religiosos, ela está além de barreiras imaginárias e políticas pessoais e ideológicas de um grupo ou de alguém. Tampouco “religião” é Filosofia, apesar de aquela conter aspectos filosóficos, e Filosofia não conter religião, ainda que possa conter religiosidade. O que hoje conhecemos como “religião” está assentada por sobre uma instituição, e é quase uma visão política partidária pessoal ou de um grupo mais ou menos homogêneo; está inteiramente repleta de ideologias e juízos de valores pessoais da opinião ou 'doxata'  como dizem os gregos. Mas Filosofia está muito além de uma instituição; ela epilastra-se no indivíduo pensante, na sua “visão espiritual e racional do mundo”, e na forma de ele lidar com o transcendente e também com o imanente. O Espiritual, necessariamente, não tem a ver com religião, ainda que as religiões pretendam estabelecer um elo entre o mundano e o divino; o profano e o sagrado. Mas Filosofia não depende de uma legitimação pela fé ou mesmo de política, ou então pertencer a uma determinada região geográfica ou por pertencer a um determinado povo, grupo de sectários, ou alguém que defende um ponto de vista ideológico preso a um tempo, lugar e circunstância. Também, a Filosofia não depende de religião apesar de a religião depender dela. Há um entrelaçamento entre ambas. Filosofia é um fenômeno racional do Homem, originado na sua busca “pelas causas primeiras”, como diz Aristóteles, e conforme sua natureza racional de pensar. Filosofia se manifesta de modo diferente segundo tempo, lugar e circunstâncias. Apesar de tudo, continua sendo Filosofia, porque é humana! 

Religião é, também, um ato humano, e se firma na fé, no ato de crer. Apesar de a Filosofia estar fundamentada na episteme ou conhecimento racional, e a segunda estar tão somente na fé, portanto no crer, há um largo e quase intransponível vale fértil entre elas. Eis que se pergunta: como, então, conciliarmos fé e razão, sem abrirmos mãos de uma, para defendermos outra? Paradoxos antigos, talvez insolúveis; mas eles são aspectos filosóficos importantes. Uma distinção dualista dura entre ciência filosófica e religião é fruto do longo lastro do pensamento fixo, bem distante do dinamismo do Ser. Crer, também, que somente uma visão religiosa é única e verdadeira, é claramente uma ideologia calcada na ignorância. O Vedanta é a ponte livre do pensar pelas causas da unidade do Ser, é por isso que é também chamado de Ontologia, porque vai além do simples crer. como bem o diz Swami Vivekananda, “Sem o Vedanta cada religião se torna superstição; com o Vedanta, tudo se torna religião” 

hari om tat sat

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vedānta e o Jñāna-yoga

Vedānta e o Jñāna-yoga

Swami Krsnapriyananda Saraswati
Gita Ashrama 
2011
Daksina Murti o Sr. Siva fornecendo Jñana
 

Vedānta, literalmente ‘sem-segundo”, tem o significado de “finalidade dos Vedas”, ou teleologia dos Vedas. Por sua vez, Jñāna-yoga, “Yoga do conhecimento”, é um termo equívoco, uma vez que Yoga é também conhecimento, nada separando um conceito de outro. Todo o verdadeiro e fidedigno Yogī visa o Conhecimento perfeito acerca do Absoluto. De certa maneira, todo o Yogī é um Jñānin. A palavra Jñāna significa “conhecimento”, “discernimento”, etc., sendo que Jñāna-yoga é o ramo do Yoga que se dedica ao saber do Absoluto ou Brahman. Por isso, algumas vezes se emprega a expressão Jñāna como sentido de iluminação, que conduz à verdade Suprema. O objetivo ou télos do Jñāna é Viveka, investigação ou discernimento. O Jñāna-yoga, originalmente pertence a chamada escola Yoga de pensamento, porém com uma tendência ao monismo ou Advaita. No Rāja-yoga, e outros ramos do Yoga, no mais das vezes, o Yogī baseia-se numa Metafísica dualista ou Dvaita. O Jñānin, isto é, aquele quem segue o caminho da Jñāna-yoga, vê no poder-da-vontade (iccha) e na razão inspirada (buddhi) os dois princípios condutores pelos quais ele pode alcançar a iluminação libertadora. O processo de Jñāna-yoga contém sete partes ou componentes, de acordo com a filosofia de Śaṅkarācārya:

1 - Viveka, que corresponde ao chamado “discernimento metafísico", ou a correta distinção entre o fenomênico ou objetivo e “a-coisa-em-si”, o eterno, o subjetivo,  imutável e infinito Brahman, em comparação com a mutável e finita corporificação do Jīva. Compara-se metafisicamente o ‘eu’ humano com o ‘Eu’ suprapessoal; 

2 - Vayragya, trata-se da renúncia ao gozo dos sentidos grosseiros, através do desapego dos objetos materiais terrenos bem como celestes (glória, fama, liberação); 

3 - Tapas, processo que permite e compreensão suprema, na medida em que realiza o que é austeridade no seu sentido amplo. Tapas é composto de no mínimo seis aspectos importantes, chamados de sat-sāṇpatti, ou “seis tesouros”: a) śama, tranquilidade; b) dāma, autocontrole; c) supārati, controle da mente; d) titikśa, tolerância; e) samadhāna, contemplação; f) śrāddha, fé. 

4 - Mumukśutvam, “desejo de liberação”. No entanto, não deve ser traduzido literalmente, pois o devoto procura realizar o Absoluto para a Sua satisfação, portanto, o jñānī autêntico está acima do desejo da liberação, mas uma inclinação, uma tendência, porque possui vayragya; 

5 - Śrāvana, dedicação ou “audição atenta” ao saber sagrado das escrituras bem como ao mestre espiritual ou guru

6 - Maṇāna, devida reflexão daquilo que foi ouvido do mestre espiritual e, 

7 – Nididhyāsana, processo que consiste em meditar sobre aquilo que foi proferido pelo mestre ou então está nas escrituras, culminando como chamado ênstase ou Samādhi.

O chamados sete passos ou partes do Jñāna-yoga aparecem no Vedāṇta Siddhanta Darśana, 190-2, da seguinte maneira: “Os grandes contempladores (Jñānīs) têm falado dos sete estágios do conhecimento. Dentre eles, o primeiro estágio do conhecimento é designado como “benevolência” (Subha-iccha); o segundo é a reflexão (vivarāna); o terceiro é a sutileza da mente (tanu-manāsa); o quarto é a consecução da lucidez (sattva-āpatti); o quinto é o desapego (āsaṇsakti); o sexto é o desaparecimento de todos os objetos (pada-arthapabvhāvani); o sétimo é a entrada na Realidade última”. O objetivo do Jñāna-yoga é o conhecimento perfeito a cerca do Absoluto. No Bhagavad-gītā 4, 19, lê-se: “Compreende-se que uma pessoa está em pleno conhecimento quando todos os seus atos estão desprovidos de desejo por gratificação dos sentidos. Esta pessoa é considerada pelos sábios como um trabalhador (karma) cuja ação fruitiva é queimada pelo fogo do conhecimento perfeito”. Na realidade última, todo o processo de Yoga, uma vez compreendido as suas premissas e propriedades básicas, é o da realização, ou a conclusão, cujo objetivo é atingir o Samādhi, ou união com o Absoluto, então, toda a dualidade do Yoga desaparece.

om tar sat

terça-feira, 17 de maio de 2011

Entendendo a unidade do Ser


Entendendo a unidade do Ser


Swami Krsnapriyananda Saraswati

Gita Ashrama
2011

Brahma, Vishnu e Siva

 Vedanta é a filosofia original dos Vedas. Ele surge sem divisões, as quais ocorreram apenas posteriormente e, de certo modo, muito recentemente. Por isso se diz que somente há um único Vedanta, o qual defende o ser como Absoluto. Advaita Vedanta literalmente quer dizer “não-segundo”, é um princípio teleológico (finalidade de) dos Vedas (verdade Suprema). Na visão da Filosofia do Vedanta, somente há um único e mesmo Ser em tudo e em todos. O Ser é chamado Sat, também Atma (antigamente dizia-se ‘atman’), Paramatma ou Brahman. Todos estes são epítetos para o Ser na Ontologia védica. Portanto, há somente um único e mesmo Ser, com muitos nomes e muitas formas. Não há “dois seres”. Quem faz alguma diferenciação dizendo que somente uma determinada forma é “deus”e que as outras não são, demonstra ser politeísta, ou que crê na possibilidade de muitos ‘deuses’, uns com mais ‘poderes’ do que os outros. Porém os tais ‘poderes’ sempre serão de natureza material, como força, beleza, riqueza, etc.


Há confusão entre ‘não-dualismo ou sem-segundo’ e dualismo, ‘com-segundo’, portanto é necessário conhecer as influências da ideologia religiosa para aprofundarmos isso. Vejamos:


Monolatria e henoteísmo

Monolatria é a adoração centrada num único ponto. Ocorre geralmente no Politeísmo (muitos deuses), onde se dá a adoração de uma só divindade, embora não implique sempre em Henoteísmo (há um deus supremo e deuses menores). Por exemplo, pode-se observar que no início da história do povo Hebreu, a partir da análise da própria narrativa bíblica, era comum a prática da Monolatria, em que determinados personagens, embora admitindo a existência de outros deuses, eram devotos de Javé, seja por temor ou fidelidade, seja por outro motivo qualquer. Essa prática era ao mesmo tempo henoteísta, pois eles criam na supremacia do deus hebreu, ao mesmo tempo em que aceitavam a existência de outros deuses. Depois dessa fase inicial dos hebreus (politeístas, monólatras e henoteístas), o culto hebraico evoluiu para a prática monoteísta, em que os demais deuses são considerados falsos ou inexistentes. Atente-se para o fato de que a Monolatria está pautada no conceito de adoração, de maneira que no Monoteísmo como no Politeísmo ela pode existir, bastando que o culto se verifique em relação a somente uma entidade divina. Em um segundo momento, o Henoteísmo está fundado no conceito de supremacia e hegemonia de um deus em relação aos demais, de modo que entre gregos e romanos, Zeus (ou Júpiter) era considerado superior aos demais deuses.

Entre os gregos, havia também a devoção a um só deus, entre tantos outros, o que não implicava a ideia de que o deus escolhido fosse superior aos demais ou a Zeus/Júpiter; a devoção geralmente se dava pela proximidade familiar que se acreditava ter em relação àquele deus. Muitas vezes também o foco da adoração se desloca para uma figura humana, um Governante, Rei, Imperador, ao qual se atribui qualidades divinas, o que pode caracterizar Monolatria. Algumas religiões, como é o caso da Wicca, utilizam o conceito de monismo para explicar a crença de que tudo o que há foi criado por uma única divindade, neste caso, a figura de uma Deusa Mãe como entidade cósmica primordial. Essa crença se baseia no fato de que, na natureza, os únicos seres capazes de gerar vida, de criar, são as fêmeas.

Henoteísmo presente em diversas religiões

Cristianismo
Vários cristãos acreditam numa grande variedade de anjossantosdemônios. etc;. porém eles sempre são inferiores à Santíssima Trindade. Embora muitos fiéis neguem que tais seres sejam deuses, muitas vezes existem em orações ou crenças.

Hinduísmo
Atualmente o Hinduísmo é descrito como uma religião monista. Porém, antigamente tais fiéis acreditavam, além de um deus supremo, em certas forças da natureza que controlavam diferentes elementos. Há, entretanto, grupos religiosos independentes, que creem em deuses e semideuses, e foram muito populares no Ocidente nos anos 70.

Mitologia greco-romana
A mitologia greco-romana é um dos mais famosos exemplos de politeísmo, por crer em vários deuses, para diversos elementos ou sentimentos. Mas segundo os mitos, existia o deus Zeus (ou Júpiter), que era supremo a todos, chamado de "O Deus dos Deuses".

Antiga religião egípcia
Horus
Na antiga religião egípcia, sempre existiram vários deuses (ou Neteru), sendo , o primeiro deus, considerado o líder e Amon, chamado de "O Rei dos Deuses" os mais poderosos. Mas, a crença diz que os dois seres formando o supremo Amon-Rá. Podendo dizer que o último seria superior a todas as outras divindades.

Monismo e Filosofia
Chama-se de monismo (do grego monis, "um") às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade como um todo (em metafísica) ou a identidade entre mente e corpo na filosofia da mente, por oposição ao dualismo ou ao pluralismo, que afirmam realidades separadas. As raízes do monismo na filosofia ocidental estão nos filósofos pré-socráticos, como Zenão de Eléia, Parmênides de Eléia, principalmente. Spinoza é um filósofo monista por excelência, pois defende que se deve considerar a existência de uma única coisa, a substância, da qual tudo o mais são modos. Hegel defende um monismo semelhante, dentro de um contexto de absolutismo racionalista e panteísta.

Advaita Vedanta
O Advaita é monista e monoteísta, aceitando somente um único e mesmo Deus com muitos nomes e muitas formas; a visão dualista, no mais das vezes, aceita muitos deuses, e que somente uma forma é verdadeira, sendo, portanto politeístas, e ao mesmo tempo colocando-se contra o panteísmo. Mas a pergunta que o Advaita-Vedanta faz aos dualistas é, se tudo é Deus, como separar uma coisa de outra?

Pancayatana Puja
O que se percebe nos Vedas é o fato de aparecerem constantemente cinco formas prevalecentes do Supremo: Siva, Vishnu, Sakti ou Devi, Ganapati (Ganesha) e Surya Deva. Em algumas origens, o conceito de Pancayatana é substituído pela noção de Shanmata, a qual acrescenta Skanda para as cinco Deidades citadas acima. A adoração é feita tanto na base diária como em ocasiões de festivais especiais. Questões do tipo de “Quem é superior?”, se Vishnu ou Siva, etc., o qual é muito comum entre muitos grupos de Hindus, não é feita pelos Advaitins, ou seguidores do Advaita Vedanta de Sri Sankara. Nas palavras de Sri Chandasekhara Bharati (1892-1954), o Jinvanmukta pleno, “Você não pode ver os pés do Senhor, por que você gasta o seu tempo debatendo sobre a natureza da Sua face?”.

Ganapati
Diz-se que Vishnu e Siva, os grandes Deuses no Hinduísmo, possuem a mesma importância na tradição Advaita. O Sannyasi da ordem Advaita, sempre sinaliza com a correspondência nas seguintes palavras: “Iti Narayanasmaranam”. Na adoração, os Advaitins não insistem em adorar exclusivamente um Devata apenas. Como Brahman é essencialmente sem atributos (Nirguna), todos os atributos ou Gunas, pertencem igualmente a Ele, dentro da realidade empírica. A forma particular que um devoto prefere de adorar a Deus é chamada de Ishta-devata. A adoração do Ishtadevata feita pelos Advaitins incluem Vishnu como Krishna, o Jagadguru, e como Rama, bem como Siva como Dakshinamurti, o Guru que ensina pelo silêncio, e como Candramaulisvara, e a Deus Mãe como Parvati, Lakshmi, e Sarasvat. Especialmente populares são as representações de Vishnu como um Salagrama (pedra sagrada), Siva como um Linga, a Sakti como o Sri Yantra. Ganapati ou Ganesha é sempre adorado no começo de qualquer atividade humana, incluindo o Puja para outros Deuses. O ritual diário Sandhy Avandana é direcionado a Surya. Os Sannyasis da Advaita Sampradaya recitam tanto Vishnu Sahasranamam e a porção Satarudriya do Yajurveda, como parte da sua adoração diária. Além disso, formas híbridas de Deidades, como Hari-hara ou Sankara-Narayana, bem como Ardhanarisvara são também adoradas.

Há outras significantes distinções entre a adoração na tradição Advaita e os outros tipos de adoração Hindu. O Advaita insiste que a distinção entre o adorador e Deus, o objeto de adoração é, no final das contas, transcendido, e que o ato de adorar por si só leva para esta identidade. Isto não deverá ser confundido com a doutrina dualista da escola Siva Siddhanta, a qual chama por um ritual de identificação entre o adorador com Siva, durante a adoração. A identidade do Atma com Brahman é uma matéria de verdade absoluta, não é apenas um ritual de identificação temporária, que se desfaz depois que o adorador “desliga-se” da sua adoração. A grande maioria das escolas Vaishnavas do Vedanta sustentam que a distinção entre o adorador e Deus, o objeto da adoração, é mantida eternamente.

Hari om tat sat